Guarda e seus efeitos
Apresenta-se a guarda como uma modalidade de família substituta, conforme previsão do Estatuto, e não obstante a sua fragilidade ante a possibilidade de ser revogada a qualquer momento pela autoridade judiciária, é inegável o fato de abrigar os direitos fundamentais previstos pela Constituição Federal e também pelo art. 7º do Estatuto.
Direitos fundamentais, como se sabe, são aqueles direitos humanos positivados pelo legislador constituinte; isto é, o constituinte entende que para a defesa dos direitos é melhor inserir sua previsão na Constituição Federal.
Nos termos do que consta no art. 7º do Estatuto, os direitos à vida e à saúde são direitos fundamentais. Desse modo, cabe à família, à sociedade e ao Estado desenvolver meios para a defesa desses direitos, de modo que a totalidade das crianças e dos adolescentes, em território brasileiro, esteja amparada.
Ao tratar da guarda, no art. 33 e seguintes, o Estatuto impõe ao guardião a obrigação de prestar assistência material, moral e educacional, além de, como um meio de facilitar o cumprimento da obrigação, expressar no §3º que a guarda confere à criança e ao adolescente a condição de dependente para todos os fins de direito, inclusive previdenciários (g.n.).
Esta previsão estatutária privilegia a doutrina da proteção integral, que procura encontrar e atender o melhor interesse da criança e do adolescente, em cumprimento à disposição do art. 1º do Estatuto, o qual tem como fundamento de validade o art. 227 da Constituição Federal.
Apesar disso, respeitadas decisões do Superior Tribunal de Justiça tem dificultado que crianças e adolescentes sob guarda tenham esta dependência previdenciária, o que afasta o amparo ao direito à vida e à saúde.
Vejamos:
“ …A Terceira Seção desta Corte tem entendimento pacificado no sentido de que, no caso de menor sob guarda, norma previdenciária de natureza específica deve prevalecer sobre o disposto no art. 33,§ 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente…” (ROMS nª22.704, 6ª Turma, Relª. Minª. Maria Thereza de Assis Moura, DJE 02/08/10)
“ …Diante desse conflito aparente de normas, o critério que melhor soluciona a controvérsia em exame é o da especialidade, ou seja, o diploma de regência do sistema de benefícios previdenciários, de caráter especial, deve prevalecer sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, este de caráter geral no confronto com aquele sobre o tema controvertido.” (ERESP nº696299, 3ª Seção, Rel. Min. Paulo Galloti, DJE 04/08/09)
Com estas decisões há um grande risco da disposição estatutária se tornar letra morta, porque é bem possível que a União e os Estados legislem em favor da administração pública e retirem ou dificultem a inclusão do menor sob guarda na condição de dependente.
Já afirmamos, em artigo sobre o tema publicado em agosto do presente ano no site do Instituto Paulista de Magistrados – IPAM e no Consultor Jurídico – CONJUR que “A solução de um conflito aparente de normas pela aplicação da regra da especialidade (lei previdenciária) em desprestigio a uma regra de caráter geral (Estatuto da Criança e do Adolescente) se sobrepõe a uma doutrina ou teoria (teoria da proteção integral) prevista no art. 1º do Estatuto que emerge do comando constitucional previsto no art. 227 da Constituição Federal.
Ganha os órgãos previdenciários, ganha a administração pública, ganha o Estado, mas perde os menores sob guarda ou tutela.”
Diante da situação real cabe à Equipe Interprofissional, em regra formada por profissionais verdadeiramente interessados na proteção de crianças e adolescentes, quando em processo de guarda, encontrar meios para que estes menores não fiquem ao desamparo, inserindo no laudo pericial sugestões que forneçam subsídios ao Juiz da Infância e da Juventude para a prolação de decisão que dê efetivamente a proteção integral tanto desejada.
Que ganhem as crianças e os adolescentes sob guarda.
Jeferson Moreira de Carvalho, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Autor do livro “Estatuto da Criança e do Adolescente – Manual Funcional e Adoção Internacional”, Ed. Del Rey.